CLONAGEM

 

Consta que o autor foi capitão da Força Aérea americana, um tal Edward Murphy. Num dia qualquer de 1949, depois de perceber que haviam montado incorretamente um equipamento que ele mesmo tinha projetado, o capitão Edward, consumido pelo desalento, falou sua frase imortal: "Se algo pode dar errado, dará". Pronto. Estava promulgada a Lei de Murphy. Desde então, ela tem servido de consolo para os equipamentos que não funcionam e para todos os intentos que fracassam, um lugar-comum dos pessimistas resignados.

A Lei de Murphy agora ameaça o maior acontecimento científico do ano passado, a clonagem que fez nascer a ovelha Dolly. Como você verá nesta reportagem, pesquisadores renomados estão falando que pode ter havido erro ali. Tanto que o próprio escocês Ian Wilmut, autor da proeza, admitiu repetir todo o processo. Mas as contestações, embora questionem o modo como foi conduzido o experimento, não põem em dúvida, pelo menos até agora, a tese que Wilmut tentou demonstrar, a de que é possível transformar o núcleo de uma célula normal em um embrião e, assim, duplicar animais adultos. O que quer dizer: ao menos em tese, dá para clonar gente.

Assim, enquanto o escocês trabalha para neutralizar seus críticos, outros se preparam para vôos mais ambiciosos. Em dezembro, o americano Richard Seed, especialista em reprodução artificial, anunciou seus planos de produzir réplicas humanas dentro de um ano e meio. Em fevereiro, um médico da África do Sul, Mohamed Casim, proclamou-se pronto para aplicar a técnica em sua clínica. Só depende de autorização legal.

"Ato contra a natureza"

A perspectiva, claro, assusta. Se a Lei de Murphy está tirando o sono de Wilmut, uma outra lei começa a virar um pesadelo ético para o resto da humanidade. É uma lei ainda não declarada, e que poderíamos formular aqui em primeira mão: "Se algo pode ser feito, será". Vamos chamá-la de Lei da Inevitabilidade Prática. Se o clone humano for mesmo possível, ele virá.

Irados protestos moralistas não resolvem grande coisa nessas horas. "Com esse ato contra a natureza e intrinsecamente mau, a humanidade pode estar dando um passo perigoso na direção do futuro." A frase, publicada em 1978 e atribuída ao porta-voz do Vaticano, dom Pier Pastore, tinha como alvo a inglesinha Louise Brown, o primeiro bebê de proveta da história. Agora nascem centenas de bebês de proveta todos os anos e ninguém mais se preocupa com isso. Louise vai fazer 20 anos no próximo dia 24 de julho e passa bem.

É difícil imaginar um futuro em que a clonagem humana seja tão corriqueira quanto os bebês de proveta. Afinal, os clones fabricados a partir de células normais são gerados sem que seja necessário um único espermatozóide, são filhos que não têm pai biológico. Tudo isso preocupa, sobretudo a técnica for mesmo comprovada empiricamente e se, depois disso, cair na Lei da Inevitabilidade Prática. Aconteceu isso com tecnologias destrutivas, como a da bomba atômica, que podia ser construída e foi. Aconteceu isso com técnicas mais amenas, como os próprios bebês de proveta. Será o mesmo o destino dos clones?

A mãe da cópia

O óvulo, nome da célula sexual feminina, é a chave da clonagem. Ele pode vir de qualquer mulher e é dentro dele que vão ficar os genes do indivíduo a ser replicado. Para isso, retira-se o núcleo do óvulo, colocando-se no lugar o núcleo de uma célula qualquer do candidato, ou candidata, à clonagem. Em tese, é esse o processo que gera o embrião que vai crescer até virar uma criança

Quem quer copiar
o semelhante

No final do ano passado, uma euforia clônica se espalhava pelo mundo. A disputa pela inauguração da primeira clínica de clonagem aberta à clientela humana já tinha começado. Quem largou na frente foi o americano Richard Seed. Num simpósio científico em Chicago, no dia 5 de dezembro, ele chocou a audiência ao anunciar que em dezoito meses pretendia começar suas atividades comerciais. Logo vieram as reações. "É um cientista marginal", fuzila o biólogo Arthur Caplan, diretor do Centro para Ética Biológica da Universidade da Pensilvânia e uma das maiores autoridades mundiais no assunto. "Ele está se apossando de um tema para atingir seus próprios objetivos, pois não tem laboratórios nem habilidade técnica para realizar o que promete."

Boa parte da comunidade científica americana segue o julgamento de Caplan. Afinal, Seed já fracassou outras vezes. Doutor em Física pela Universidade de Harvard, teve seus momentos de glória nos anos 70, ao montar duas empresas que tiveram sucesso financeiro e reconhecimento científico. Numa delas, tornou-se pioneiro em implantar embriões criados em tubo de ensaio no útero de mulheres estéreis. Mas foi à falência e, nos últimos dez anos, perdeu tudo. Hoje mora de graça na casa de um filho, o programador de computadores Robert. Mas está longe de ser um perdedor.

O bebê de 300 000 dólares

"Ele pode parecer meio louco", disse Robert à SUPER, "mas é perfeitamente capaz de fazer a primeira clonagem humana." Lori Andrews, professora de genética e direito da Faculdade Chicago-Kent, organizadora do simpósio em que Seed fez seu anúncio bombástico, concorda: "É preciso levá-lo a sério, pois ele já provou ser muito competente em fertilidade humana. E é persistente."

O que Caplan e os críticos de Richard Seed não negam é a possibilidade da clonagem, ao menos em tese. Se comprovada a experiência de Wilmut, muitos admitem que os primeiros clones humanos podem nascer dentro de, no máximo, cinco anos. A advogada Lori Andrews falava em dois ou três anos, apenas. O geneticista-médico brasileiro Walter Pinto Jr., da Unicamp, especializado em inseminação artificial, com mais de 100 nascimentos no currículo, confia na nova técnica, mas alerta para dificuldades que persistem. A principal é a da quantidade.

Para que Dolly nascesse, foram necessários 277 núcleos de células comuns, que, depois, foram enxertados em 277 óvulos. Só treze viraram embriões e, desses, apenas um sobreviveu. Nas mesmas bases, uma clínica teria de dispor de 277 óvulos para tentar clonar alguém. Seria uma epopéia. Uma mulher normal produz só um óvulo por mês. Com remédios, chega no máximo a dez. A saída seria recrutar trinta voluntárias, que teriam de ser monitoradas o tempo todo. "Calculo que, hoje, o preço final de uma tentativa ficaria por volta de 300 000 dólares", estima Walter Pinto Jr.

Mas, por ora, a palavra de ordem é cautela. A euforia clônica levou um senhor balde de água fria no dia 30 de janeiro, quando a revista americana Science publicou uma carta dos renomados cientistas Norton Zinder, da Universidade Rockefeller, e Vittorio Sgaramella, da Universidade da Calábria, na Itália, apontando incorreções na experiência de Dolly. A doadora da célula adulta - ou seja, a "mãe" da Dolly - já tinha morrido quando a "filha" nasceu. Aí ficou impossível comparar a cópia com a matriz para garantir que as duas tinham os mesmos genes. Pior: a doadora estava grávida, o que complica tudo. Uma das células fetais, que existem normalmente no sangue das fêmeas nesse estado, poderia teoricamente ter se misturado àquelas que foram colhidas para a experiência. Se algo assim tivesse ocorrido, e se fosse exatamente o núcleo dessa célula fetal que entrou no óvulo que deu origem à Dolly, não haveria novidade na experiência (já se duplicam artificialmente células fetais há 20 anos). Wilmut afirma, com razão, que essa hipótese é "extraordinariamente improvável"; a chance de ela acontecer seria de uma em muitos milhões. Mesmo assim, ele, que antes se negava a repetir o experimento, dizendo que isso seria "aborrecido e sem imaginação", vai refazer tudo. Agora, com mais cuidado.

Apesar dos senões, bastante graves, por sinal, ninguém diz que o trabalho de Wilmut é uma fraude. Depois, a mais importante alegação que ele tentou demonstrar - a de que é possível fazer uma célula comum, tirada de um animal adulto, virar embrião - já foi confirmada por Neal First, da Universidade do Wisconsin. First produziu pela mesma técnica embriões de rato, de macaco, de ovelha e de porco. Embora todos tenham morrido antes do nascimento, sua breve existência já é, parcialmente, uma reafirmação do trabalho do escocês, o que não é pouca coisa.

Futuro do Passado

Sem trauma por ter nascido de uma proveta, Louise Brown faz 20 anos em julho. Na foto, a festa de 15 anos

 

Um clone chamado cavalo

Muitas experiências com bichos ainda vêm por aí.

Agora, até um garanhão de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, pode vir a ressuscitar. Trata-se do Turbante, que gerou 1 654 descendentes da raça manga-larga no Brasil. Morto em janeiro, ele seria reproduzido a partir de células da pele congeladas antes da morte.

Mas o teste mais aguardado é o do americano Don Wolf, que quer duplicar macacos resus na Univesidade de Oregon. Os filhotes virão em dezembro. "Se tivermos êxito", disse Wolf à SUPER, "os cientistas vão ficar muito mais convencidos de que dá para fazer a mesma coisa com gente."

Gestação em marcha O embrião é um óvulo que recebeu um núcleo de célula a ser xerocada. Implantado no útero, ele se multiplica e cresce até virar feto

 

Perto da fronteira mas longe da lei

Com o próprio presidente Bill Clinton empenhado em proibi-la, a possível clonagem de gente enfrenta resistências ferrenhas nos Estados Unidos. Sobre ela, há sete projetos de lei em tramitação no Congresso americano. O mais brando, assinado pelo senador Edward Kennedy, aceita que se façam experiências, mas elimina suas aplicações práticas. Se a lei for aprovada, não será permitido implantar óvulos clonados no útero de uma mulher. O projeto menos conciliador considera que basta alguém tentar estudar o processo para incorrer em crime.

Mas está claro, desde já, que esse tipo de argumento não vai intimidar os cientistas que acreditam nos benefícios da clonagem. Sem falar nos loucos de todo gênero, que esses não se dobram mesmo. Para conhecer alguns deles, abra a Internet e confirme: já existem pelo menos três sites oferecendo clones já. Se você digitar www.clonaid.com, vai entrar no mais conhecido, dirigido pela médica Brigitte Boisselier. É folclórico, você não deve levar a sério, mas dá uma boa dimensão da temperatura do debate. O site mistura teses exóticas, como a de que Jesus Cristo era um clone, com a oferta de assistência àqueles que queiram replicar-se artificialmente. Para garantir-se, a Clonaid diz que irá se instalar num país em que a legislação autorize a atividade.

Rota de fuga à lei

Nesse caminho, o de fugir de uma provável proibição americana, a opção que tem mais chance de funcionar é a que foi sugerida pelo próprio Richard Seed. Se não puder trabalhar em seu país, Seed declarou que vai para o México. Mas ali as coisas encareceriam um pouco, segundo projetou. Para conquistar a boa vontade dos mexicanos, procuraria prestar algum tipo de serviço médico à população pobre da cidade em que se estabelecer, "provavelmente Tijuana", a menos de 30 quilômetros de San Diego, na Califórnia. É um método meio demagógico para ganhar legitimidade, mas o médico se defente: "Não podemos impingir os padrões de comportamento americanos a outras partes do mundo". Com isso, o custo saltaria dos 2 milhões de dólares, necessários para montar a clínica nos Estados Unidos, para 2,5 milhões.

Mas, de novo, é preciso ir com cuidado. Dizer que a clonagem é factível é completamente diferente de dizer que ela deve ser aplicada. A primeira afirmação tem a ver com o grau de domínio que se tem sobre uma tecnologia que está nascendo. A segunda, com o que é direito, ou com o que a humanidade considera que seja digno, justo e bom. Que a técnica traz vantagens, ninguém discute. Inclusive porque não serve para atacar problemas de infertilidade, apenas, mas pode ajudar toda a Medicina. Já se sabe que, depois de aprimorada, poderá ser decisiva no combate de diversas doenças, da leucemia ao mal de Parkinson.

Imagine um paciente com leucemia, que é causada por um defeito nas células do sangue. O plano é substituir essas "peças estragadas" por outras perfeitas. Para isso dá para fazer um clone, mas não do indivíduo inteiro: basta copiar uma parte de sua medula espinhal, o órgão responsável pela fabricação do sangue. Introduzido no paciente, a réplica de medula purificaria a circulação, destruindo o câncer pela base.

É por motivos assim que muitos cientistas contrários à clonagem no plano ético não fazem coro com a onda proibicionista. Nenhum nome ilustra melhor essa tendência recente do que o de Arthur Caplan, ele mesmo, o crítico mais feroz de Richard Seed. Embora considere que a clonagem humana não deve ser permitida por enquanto, ele sabe que não é bom impor freios muito rigorosos à investigação científica, pois isso poderia retardar as pesquisas potencialmente úteis à Medicina. Pela mesma razão, a revista americana Time, em sua edição de 9 de fevereiro, esclareceu seus leitores: "Os benefícios dessa ousada técnica superam os riscos".

Essa mudança nos humores americanos, ainda que improvável, pode ser esclarecedora. Se se dissiparem os medos, muitas vezes injustificados, ficará muito mais fácil debater os prós e os contras. A clonagem é uma técnica, não um pecado por antecipação. Claro, é sempre bom levar em conta que toda técnica, depois de inventada, acaba ganhando vida própria, e tem o risco de fugir ao controle - o que nos leva de volta ao nosso ponto de partida, à nossa Lei da Inevitabilidade Prática. Se algo pode ser feito, será. Mas a técnica não é o problema. A sua inevitabilidade também não é o problema. O problema é, como sempre foi, o uso que a civilização faz - para o bem ou para mal - de suas próprias invenções.

De olho na saúde

A idéia de combater doenças atrai a atenção dos médicos.

Se a técnica de Wilmut for mesmo capaz de reproduzir um organismo, que é formado de muitas células diferentes, também pode gerar um "pacote" de células idênticas, que seriam vitais para a Medicina. Imagine criar células sadias da pele para quem perdeu as originais em queimaduras. Ou células da medula para substituir as do sangue, em quem tem leucemia (veja o infográfico abaixo). Ou, então, neurônios novos, que recuperem a capacidade mental dos pacientes do mal de Parkinson. Essa lista crescente, é claro, está fazendo com que os médicos vejam a clonagem com mais simpatia.

Com o câncer na mira

Veja como a cópia de células poderá curar a leucemia.

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